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A economista fala sobre sua atuação na criação de programas de microcrédito no Brasil e destaca o poder do crédito aliado à capacitação para fortalecer empreendedores em situação de vulnerabilidade 

Maria da Conceição Faheina de Oliveira tem uma trajetória inspiradora. Economista pela Universidade Federal do Ceará, com especializações internacionais e duas décadas de atuação no Banco do Nordeste, ela esteve à frente da criação de um dos maiores programas de microcrédito da América Latina, o CrediAmigo. Também colaborou para levar inclusão financeira à região amazônica e à Cabo Verde, na África, sempre com foco na redução da pobreza e na transformação social. 

Atualmente, Conceição é gerente de políticas, programas e parcerias da ADECE (Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará), onde se dedica ao fortalecimento do Ceará Credi — programa que alia crédito produtivo a capacitações gratuitas por meio da parceria com a Aliança Empreendedora e o Tamo Junto. Mais de 95 mil pessoas já foram apoiadas, a maioria mulheres chefes de família, que buscam ampliar sua renda e autonomia. 

Nesta entrevista, Conceição compartilha marcos importantes de sua carreira, desafios enfrentados pelos microempreendedores brasileiros e ações essenciais para impulsionar a inclusão financeira no país. Conversa que revela uma profissional comprometida com a justiça social, movida pela convicção de que todas as pessoas merecem acesso a oportunidades — especialmente quem se encontra à margem do desenvolvimento socioeconômico.

  1. Conceição, a sua trajetória profissional é marcada pela atuação em defesa da inclusão financeira. Quais foram os momentos mais transformadores desse percurso?

Desde que tomei a decisão de sair do interior do Ceará e vir morar em Fortaleza, sozinha, com 17 anos, eu sabia da minha determinação de estudar economia, defender ideias que nós, mulheres, podemos atuar na redução da pobreza e na inclusão financeira — mesmo em ambientes dominados pelos homens.  

 Fiz a faculdade de economia e passei no concurso para ser funcionária do BNB (Banco do Nordeste do Brasil). Um banco de desenvolvimento regional, onde por meio de participação de cursos, no Brasil e no exterior, cresci meu comprometimento e o desafio de enfrentar todos os que criassem barreiras à rota traçada em busca dos meus propósitos e sempre guiada por Deus. 

  1. Como surgiu o seu interesse pelo microcrédito e como essa escolha tem moldado a sua carreira? 

Quando voltei de um curso na PUC do Chile, o Banco do Nordeste recebeu uma missão do Banco Mundial para criar um programa de microcrédito e fui convidada para participar desse grupo de trabalho. Eu aceitei, senti que esta era a oportunidade de apostar em um tema que estava no meu DNA: servir às pessoas da classe menos favorecida a terem oportunidade de ampliar suas atividades econômicas, focar nas mulheres para que não aceitassem violência de gênero por não ter fontes de renda e promover o direito das pessoas a terem um trabalho digno.

  1. No Banco do Nordeste, você ajudou a criar o CrediAmigo, que se tornou referência na América Latina. O que foi essencial para esse sucesso?

O Banco do Nordeste instituiu o CrediAmigo em 1997. Junto com a decisão do banco, veio o desafio de planejar como entregar o microcrédito produtivo orientado às pessoas em situação de pobreza do Nordeste do Brasil, para atividades produtivas urbanas, de maneira orientada, por meio do agente de crédito, mantendo a sustentabilidade econômica do programa. 

 Foi criada uma estrutura dentro do banco para desenhar o programa, junto com uma consultoria da Accion International e um especialista do CGAP (Grupo Consultivo de Assistência aos Pobres). Nesta época, eu era a coordenadora-executiva e, junto com a gerente geral do programa, visitamos iniciativas de sucesso para conhecer as experiências no tema das microfinanças. Lugares na Bolívia, no Peru, na Colômbia e no México, como o BancoSol, Banco Los Andes e Compartamos. 

 Cito como principais pontos de sucesso: 

  • Decisão de adotar de forma rigorosa a metodologia do microcrédito produtivo orientado e das finanças de proximidade;  
  • Rigor no recrutamento, na seleção e na capacitação com metodologia dos agentes de crédito, coordenadores e supervisores regionais; 
  • Enfrentamento de preconceitos como a ideia de que pobres não pagam e não existe viabilidade financeira para os pequenos negócios; 
  • Adoção de modelo de gestão operacional, com acompanhamento forte para redução de inadimplência; 
  • Criação de formas de atendimento inovadoras, por meio de grupos solidários, como forma de acesso ao programa. Isso gerou uma cultura econômica de inclusão financeira da população de baixa renda que não existia em outras regiões do Brasil.
  1. E como se deu a transição para o Ceará Credi, o que te inspirou na proposta da organização?

Antes de chegar ao Ceará Credi, pedi demissão do BNB, mas ainda tinha desafios a enfrentar. Por exemplo: apoiar o Banco da Amazônia a criar um programa de microfinanças para a região. Passei dois anos lá e, em seguida, fui contratada como coordenadora por uma ONG francesa (Planet Finance, na época). Atuei com a ONG por dois anos e meio, para implantar o fortalecimento de oito IMFs (Infraestruturas do Mercado Financeiro) em Cabo Verde, na África. 

 Em 2021, com a pandemia de Covid-19, em face do desemprego, do isolamento social e com indicadores que a população de baixa renda estava sendo a mais prejudicada, o Governo do Ceará criou um programa de microcrédito em busca de inclusão socioeconômica de microempreendedores informais. Isto me atraiu muito em cooperar com o desenho do programa, pois as prioridades eram as categorias mais desfavorecidas, como mulheres chefes de família, vítimas de violência doméstica, egressos do sistema prisional, deficientes… Pessoas excluídas do sistema financeiro formal. 

 Além do crédito, foi feita uma parceria com a Aliança Empreendedora na plataforma online Tamo Junto, para que os clientes tenham acesso a cursos de gestão de negócios sem custos, para construir habilidades focadas no desenvolvimento produtivo, pessoal e familiar com sustentabilidade. Foi um grande diferencial. Os cursos abordam mais de 300 temas, adequados à necessidade dos clientes, e são muito elogiados. Desde o início do programa até fevereiro de 2025, já foram oportunizadas 51.416 capacitações. 

  1. Quais são os principais desafios enfrentados por microempreendedores para acessar crédito? 

Os principais desafios são a falta de conhecimento dos empreendedores de que existe um programa adequado para, tanto criar uma atividade econômica, como para ampliar seu negócio. Muitos ficam nas mãos de agiotas ou não crescem, ficam estagnados por falta de recursos para capital de giro ou investimento. Outro ponto é o medo de se endividar e não poder pagar, pela falta de experiência ou por ter vivido uma situação anterior fracassada. 

  1. Diante desse panorama, qual é o papel do Ceará Credi? E que inovações a instituição traz para apoiar microempreendedores?

Há um esforço de divulgação para implantar pontos de atendimento aos potenciais e atuais clientes. Essas ações envolvem o Governo do Ceará, Adece (Agência de Desenvolvimento do Estado do Ceará), em parceria com a SET (Secretaria do Trabalho), IDT (Instituto de Desenvolvimento do Trabalho), com algumas Secretarias do Estado e com os municípios do Ceará. 

 Existe uma inovação que tem atraído muitos clientes. Se eles pagarem em dia, recebem um bônus de 10% do valor emprestado, no final de todos os pagamentos, para que possam criar uma poupança ou investir em seu negócio. A parceria dos cursos com a Aliança Empreendedora tem trazido depoimentos de clientes que não tinham feito nenhuma capacitação e agora sabem diferenciar gastos do trabalho dos gastos familiares, pessoas que fizeram o curso Superpoderes da Tecnologia e avançaram nas vendas. 

  1. O principal público atendido pelo Ceará Credi são mulheres, muitas delas chefes de família. Como o programa impacta a vida dessas mulheres?

No Brasil, quase a metade das mulheres que empreendem, o fazem por necessidade para conseguir uma renda e não por escolha própria. O programa Ceará Credi, por meio do acesso ao microcrédito e à capacitação, tem como uma das prioridades empoderar as mulheres no seu processo de transformação, como líderes, nos seus planos empresariais, na libertação da violência doméstica, na melhoria da renda familiar, dar oportunidade de abrir um novo negócio ou de investir em um negócio já existente. 

 O público feminino atendido pelo Ceará Credi corresponde a 71% de todos os clientes, sendo que 55% são chefes de família e algumas estavam em situação de vulnerabilidade econômica. A UFC (Universidade Federal do Ceará) realizou uma pesquisa de impacto em 2023, na periferia de Fortaleza, numa análise global do perfil dos beneficiários. Como um dos resultados relevantes, temos 87% dos entrevistados afirmando que os tipos de empréstimos do Ceará Credi estão de acordo com suas necessidades. No agregado, pode-se afirmar que o Ceará Credi proporcionou um incremento nas receitas brutas e líquidas dos (as) clientes, após o empréstimo, com percentuais de 46% e 47%, respectivamente.

  1. O Ceará Credi e a Aliança Empreendedora têm um modelo de parceria que reúne crédito e capacitação gratuita. Quais os resultados dessa colaboração? 

Está comprovado, por meio de vários estudos feitos, que a inclusão financeira contribui para o empoderamento e autonomia econômica, principalmente para as mulheres. A capacitação, por sua vez, permite ampliar as possibilidades de desenvolvimento produtivo, pessoal e familiar com sustentabilidade, ou seja: reduz o risco dos negócios fecharem.  

 A Aliança, uma grande parceira desde o início do programa, oportunizou o acesso de seus cursos pela sua plataforma digital a mais de 51 mil dos 95 mil clientes do Ceará Credi, atendidos em 3 anos. De forma gratuita para nossos clientes, os cursos da Aliança abordam temas da mais alta relevância, por meio de metodologia adequada ao seu perfil, com módulos virtuais de pequena duração e fácil entendimento, divididos em sete trilhas, como marketing e vendas, finanças, ofertas de crédito, formalização, comportamento empreendedor, bem-estar e precificação.  

 Os agentes de crédito apresentam aos clientes as trilhas e como se inscrever na plataforma do Ceará Credi, para que eles escolham, de acordo com suas necessidades, o conhecimento de forma contínua. Buscamos mostrar que o conhecimento é a moeda mais valiosa do Século XXI. Assim, a cliente tem a habilidade de saber fazer, utilizar o conhecimento da Aliança para alcançar suas metas. Temos vários vídeos onde as mulheres relatam como foi importante realizar a capacitação, melhorou sua autoestima e potencializou suas capacidades de desenvolver suas atividades produtivas.

  1. Olhando para o futuro, como você vê a evolução do setor de microcrédito no Brasil e o seu papel no fortalecimento da economia?

O Brasil precisa de micro, pequenos empreendimentos, formais e informais, pois são motores de extrema importância para o crescimento econômico com inclusão, promovendo a redução da pobreza e a desigualdade. O microcrédito permite oportunizar aos empreendedores que ampliem seus negócios, mesmo quando eles têm pouco dinheiro para comprar mercadorias, insumos e investimento. O empréstimo combinado com a capacitação em gestão financeira é fomento para aumentar a eficácia das atividades produtivas e ajudar na transformação da dinâmica de poder das famílias. 

 A transformação digital criou desafios onde a digitalização emergiu como um catalisador do crescimento, eficiência e necessidade de adaptação às plataformas. O celular é a principal forma pela qual a maioria das pessoas acessa a internet em países de baixa e média renda, especialmente as mulheres. Entretanto, uma lição aprendida por meio de pesquisas é que mesmo que as instituições financeiras recorram aos canais digitais, o acesso ao microcrédito deve continuar nas redes físicas e sociais, com agentes de crédito e parceiros. Além disso, é necessário ampliar a oferta de microcrédito através de vários canais: OSCIPs (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público), bancos públicos, bancos privados, cooperativas de crédito e agências de fomento. Para isso, é fundamental uma política pública que ofereça o “funding” adequado — ou seja, recursos financeiros estáveis e acessíveis para viabilizar a concessão dos microcréditos. 

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