A Aliança Empreendedora foi uma das organizações destacadas pela reportagem sobre empreendedorismo social e negócios sociais da edição de Dezembro 2009 / Janeiro 2010 da Revista EXAME PME. Abaixo você encontra a capa da revista, um trecho e o link para a matéria completa no site da EXAME PME.
http://portalexame.abril.com.br/revista/pme/edicoes/0022/eles-fazem-muito-pouco-521113.html
Eles fazem muito com pouco
O que pequenos e médios empresários têm a aprender com empreendedores sociais que criaram modelos de negócios com poder de gerar resultados a partir de recursos quase sempre escassos
Por Juliana Borges | 18.12.2009 | 10h12
Portal EXAME –
O engraçado é que é sério.” O slogan dos Doutores da Alegria, que leva palhaços a hospitais para espantar a melancolia de crianças internadas, bem que poderia servir para definir um dos muitos desafios dessa entidade sem fins lucrativos — não perder seus melhores funcionários para o mercado. O engraçado é que os funcionários são palhaços. O sério é que não é um problema fácil de resolver. Em seus 18 anos de existência, os Doutores da Alegria sempre trabalharam com palhaços profissionais e contratados. No início, não era claro que perspectivas eles encontrariam ali. Hoje, um programa de treinamento e um sistema de remuneração por mérito ajudam a mantê-los comprometidos com as metas de longo prazo da entidade — 56% dos quase 100 palhaços dos Doutores da Alegria têm mais de quatro anos de casa e cerca de 30% estão lá há mais de dez anos. “Temos orgulho desse resultado”, diz o fundador Wellington Oliveira, de 49 anos. “Muitas empresas boas não conseguem ter uma rotatividade baixa assim.” Manter talentos é uma entre as muitas outras preocupações de Oliveira (e dos outros empreendedores sociais citados nesta reportagem) semelhantes às de todo pequeno e médio empresário empenhado em expandir e melhorar seu negócio. Em comum, os dois tipos de empreendedor também precisam encontrar as melhores práticas de divulgar o que fazem, aumentar receitas, conter custos e administrar o fluxo de caixa — tudo isso com recursos contados.
-“O grande desafio de um negócio social é ter um funcionamento que não dependa somente de patrocínios e doações”, diz Leila Novak, criadora do Instituto Papel Solidário, entidade que apoia jovens empreendedores nessa área. “As soluções que eles encontram podem ser interessantes para pequenas e médias empresas, que também precisam fazer muito com pouco.”
Como outros empreendedores, Nogueira, dos Doutores da Alegria, precisou aprender na prática a administrar um negócio e a lidar com funcionários. Nogueira é ator, formado pela Academia Americana de Teatro Dramático e Musical de Nova York. Desde o início, ele acreditava que o projeto tinha de envolver profissionais. “A ideia não daria certo com voluntários que se fantasiassem de palhaço nas horas de folga”, diz. O palhaço recém-contratado faz uma espécie de residência médica, que dura um ano. Nesse período, acompanha uma dupla de palhaços experientes para aprender a lidar com crianças doentes e saber que tipo de brincadeira pode ser feita num hospital. Ao final, recebe diploma de “besteirologista” e pode fazer parte de uma dupla. Com o tempo, palhaços mais antigos podem ser promovidos a coordenadores dessas equipes. “Aqui, eles têm uma carreira”, diz Luis Vieira da Rocha, diretor executivo da entidade.
O cargo de Rocha foi criado há quatro anos. “Como também acontece nas pequenas empresas que se desenvolvem, chega uma hora em que precisamos de um profissional”, diz Nogueira. Ele ficou mais livre para pensar novas formas de expandir as atividades dos Doutores da Alegria para além dos hospitais — como as palestras de motivação que já são feitas em empresas. Esse tipo de atuação é muito importante para trazer recursos — 30% dos 5,5 milhões de reais necessários para as 75 000 visitas feitas por ano a hospitais vêm de receitas próprias.
Não depender só da boa vontade alheia e de doações que nunca se sabe se chegarão mesmo é o objetivo do ex-entregador de jornais José Júnior, de 41 anos. Um dos fundadores do AfroReggae, que promove cursos de música, teatro e dança em favelas cariocas, Júnior tem de superar todos os dias esse desafio — talvez tão grande quanto as incertezas de sua infância no subúrbio do Rio de Janeiro, onde nasceu. A entidade tem um orçamento anual de cerca de 10 milhões de reais. “Metade do dinheiro já vem de receitas próprias”, diz Júnior. O resto é bancado por três grandes empresas e pelo governo do Rio de Janeiro.
Uma boa parte das receitas vem de negócios diretamente ligados aos projetos da entidade — venda de ingressos de shows e CDs das bandas apoiadas e publicidade de programas em rádio e TV. Outra parte vem da força que o nome AfroReggae adquiriu em seus 16 anos de vida. O dinheiro vem do licenciamento da marca para a fabricante de roupas Hering, de cursos de percussão e teatro para grupos fora da periferia, da venda de livros e até de consultoria para empresas que procuraram a entidade a fim de entender melhor o comportamento de consumidores de baixa renda. “O AfroReggae se tornou também uma marca”, diz Júnior.
No total, o AfroReggae mantém 74 projetos, entre 14 grupos artísticos, um programa de televisão, cinco de rádio e uma revista, além de cursos e oficinas nas favelas de Vigário Geral, Parada de Lucas e Morro do Cantagalo. A organização também já foi tema de quatro filmes de cinema — entre eles o Favela Rising, produção americana que ficou entre as 15 pré-selecionadas ao Oscar 2006. Em março de 2010, será inaugurado um centro cultural em Vigário Geral, o primeiro de grande porte numa favela brasileira, que custou 5 milhões de reais.
“É muito saudável que organizações não governamentais procurem se tornar mais autônomas financeiramente”, afirma Monica de Roure, diretora da subsidiária brasileira da Ashoka, organização não governamental criada na Índia que promove o empreendedorismo social em 60 países. “O que é feito para gerar caixa aumenta o alcance das iniciativas.”
Um caminho é usar a especialidade da entidade para criar serviços e produtos que possam interessar às mesmas empresas que seriam procuradas para bancar patrocínios ou fazer doações. Foi o que fez a historiadora carioca Karen Worcman, de 47 anos. No início dos anos 90, ela fundou o Museu da Pessoa, que atua para registrar, preservar e transformar em informação histórias de vida de qualquer brasileiro, famoso ou não. Na época, o dinheiro para financiamento de projetos com fins sociais era ainda mais restrito. “Além disso, poucos entendiam nossa proposta”, diz Karen. “Por que conservar a memória de pessoas desconhecidas? Aquilo soava muito estranho.”
Karen começou a propor para grandes empresas, como Petrobras, Vale e Bradesco que, em vez de gastarem com festas ou jantares em datas comemorativas, produzissem vídeos ou exposições sobre a vida dos próprios funcionários. Deu certo. Depois, o Museu da Pessoa passou a atender clubes de futebol para colher a história de jogadores e resgatar a memória de torneios antigos. “O material organizado para esses clientes ajudou a alimentar o acervo”, diz Karen. Hoje estão guardadas ali 10 000 entrevistas e 72 000 fotos, entre outros documentos. Com esse arquivo, foram publicados 31 livros, como o Memória de Brasileiros — uma História em Todo Canto, com personagens de todas as regiões do país.
Em 2001, o Museu da Pessoa tornou-se uma instituição mista, que também capta patrocínios para seus projetos. “Fizemos um caminho inverso ao de outros negócios sociais, que geralmente começam com incentivos e depois vão buscar formas de se sustentar financeiramente sozinhos”, diz Karen. “Acho que se não tivéssemos corrido atrás de nossas próprias receitas desde o início, dificilmente teríamos chegado até aqui.”
Depois de conseguir recursos, administrá-los eficientemente é o segundo desafio — da mesma forma, gerir o fluxo de caixa é uma necessidade de dez entre dez pequenos e médios empresários. Na Associação Saúde Criança Renascer, cujo trabalho é evitar que crianças que tiveram alta em hospitais voltem a ser internadas por falta de acompanhamento médico, essa é uma preocupação central. Para diminuir a reinternação de crianças em 24 hospitais do Rio de Janeiro, a organização criada pela médica carioca Vera Cordeiro, de 57 anos, dá atendimento às suas famílias. Entre outros trabalhos, a entidade oferece atendimento psicológico e monta oficinas que auxiliam a aumentar a renda média delas.
O trabalho começou em 1993, no Hospital da Lagoa. Desde o início do projeto já foram ajudadas mais de 8 600 crianças e 2 500 famílias. No início, todas as despesas eram cobertas com doações e patrocínios de grandes empresas. “Muita gente colaborava, mas a incerteza era grande”, diz Vera. “É difícil planejar qualquer coisa sem saber se e quando os recursos vão entrar.” Para acabar com esse problema, há pouco mais de um ano a Saúde Criança Renascer criou um fundo patrimonial, com dinheiro de pessoas físicas e empresas que apoiam a iniciativa. O patrimônio do fundo é de 7,5 milhões de reais, administrado por um comitê de quatro economistas — o ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga é um deles — que o aplica em títulos de renda fixa e ações. “O rendimento cobre todas as nossas despesas fixas”, diz Vera.
Para atrair investidores, Vera precisou mostrar que o Saúde Criança Renascer traz resultados concretos. “Essa é uma dificuldade das organizações não governamentais, que nem sempre trabalham com bens e serviços tangíveis”, diz Monica, da Ashoka. Por isso, passou-se a medir uma série de parâmetros, como a taxa de reinternação das crianças e o aumento médio da renda das famílias atendidas. Uma vez por ano, tudo é auditado pela Deloitte.
Os empreendedores sociais têm uma tarefa básica que os pequenos e médios empresários conhecem bem — tornar o negócio conhecido e zelar por sua reputação. Caso contrário, quem vai colaborar? A competição por recursos é grande no terceiro setor. Só de organizações não governamentais filiadas à Abong, que reúne essas entidades no Brasil, são quase 300 — fora dezenas de grupos considerados mistos e agremiações de voluntários que se dedicam a todo tipo de causa, como defender o meio ambiente e recolher cães e gatos abandonados, que também batem às mesmas portas à procura de recursos.
A batalha é particularmente dura para as entidades mais jovens. Criado em 2004 por Mônica Barroso Keel e Cecília Zanotti, ambas de 34 anos e formadas em administração de empresas pela Fundação Getulio Vargas, o Projeto Bagagem organiza roteiros turísticos que ajudem a gerar renda para a população das pequenas comunidades que moram nas regiões visitadas. São feitas viagens para destinos como Amazônia, Chapada Diamantina e comunidades caiçaras do Paraná. Mas como divulgar aos turistas que esses passeios podem ser interessantes? “Não podíamos depender apenas do boca a boca”, diz Cecília. “Tínhamos de agir como um concorrente no setor e traçar uma estratégia comercial para vender mais.”
No início deste ano, Mônica e Cecília fizeram um curso promovido pela Ashoka. O treinamento, desenvolvido em parceria com a consultoria McKinsey, capacita empreendedores sociais e ambientais a fazer planejamentos estratégicos para as suas organizações. “Muitos negócios sociais com propostas interessantes encontram dificuldade de traçar planos de longo prazo”, diz Carina Pimenta, coordenadora de parcerias estratégicas da McKinsey.
Com a ajuda dos consultores da McKinsey, Cecília e Mônica agora sabem aonde querem chegar. “A meta é vender pacotes turísticos para 50 destinos no Brasil em cinco anos”, diz Cecília. Segundo o plano, daqui a quatro anos o Projeto Bagagem deverá atingir um faturamento anual de mais de 1,4 milhão de reais, quase cinco vezes o atual. Um caminho para essa expansão é fazer parcerias com grandes agências de viagens. Já está funcionando um acordo com a TAM Viagens, que vende roteiros para o Maranhão e a Amazônia aos funcionários do grupo TAM. No próximo ano, serão organizados passeios para destinos como Amazônia e Paraty, vendidos em agências de viagens da Espanha e da Holanda.
Nem todos os empreendimentos sociais têm vocação para se tornarem financeiramente independentes. De acordo com o livro The Power of Unreasonable People (“O poder das pessoas que não usam apenas a razão”, numa tradução livre para o português), escrito por John Elkington e Pamela Hartigan, dois dos maiores especialistas em desenvolvimento sustentável no mundo, os empreendedores sociais podem ser divididos em três grandes grupos. Há os totalmente dependentes, que atuam em áreas em que é praticamente impossível gerar recursos próprios. No segundo grupo estão os híbridos, que recebem doações e também são capazes de gerar alguma receita — como os que apareceram nesta reportagem até aqui. No terceiro estão os que não precisam de doações e têm, em muitos aspectos, funcionamento semelhante ao das empresas tradicionais.
Mesmo as entidades desse terceiro grupo exigem investimentos consideráveis de recursos financeiros, humanos e materiais e levam algum tempo para trazer resultados e tornarem-se, de fato, auto-sustentáveis. É o que está acontecendo com a Aliança Empreendedora, entidade curitibana criada em 2005 para fomentar o empreendedorismo em comunidades de baixa renda. Dos três grandes projetos em execução até agora, apenas a Solidarium, que articula parcerias entre grandes redes varejistas e empreendedores, já conquistou autonomia financeira. Em 2006, foi assinado um desses acordos com a rede de supermercados Walmart. Hoje, 58 lojas da rede mantêm uma gôndola com produtos ligados ao projeto. Em agosto, começou a funcionar uma parceria semelhante com 111 unidades das lojas Renner. “A receita arrecadada com essas vendas banca as despesas do Solidarium e o que sobra é reinvestido na iniciativa”, diz o administrador de empresas Rodrigo Brito, de 28 anos, fundador da Aliança Empreendedora.
Um fundo de microcrédito da entidade está prestes a seguir um caminho semelhante. Brito prevê mais dois anos até alcançar uma escala capaz de arcar com seus custos. O fundo tem mais de 130 000 reais, usados para empréstimos de valor médio de 900 reais. “A inadimplência é inferior à média dos bancos”, diz ele. O terceiro braço, a Saga, dá treinamento e consultoria aos empreendedores. “Muitas pessoas chegam até nós sem saber produzir absolutamente nada”, diz Brito. Essa parte ainda é dependente de doações de empresas. “Esperamos que, com o tempo, os outros dois projetos consigam pagar também os custos da Saga”, diz Brito.